Balanço
Para cada uma das nossas aventuras, há sempre um momento de balanço. Não sei se me antecipo, se deva avançar mais algum tempo, mas parece-me que esta é uma hora tão boa como outra qualquer.
O Labirinto surge devido a uma inquietação: se temos aqui a tecnologia, até que ponto é possível usá-la para fazer literatura. A questão não é fácil de abordar, mas tenho pensado muito nela. Há exemplos de blogues literários (alguns, excelentes, constam da lista de links). Penso que este meio é ideal para a prática da crónica, da crítica e até do conto curto. Mas a novela é outra coisa.
As limitações começam naturalmente no autor. Quando lancei este conjunto de histórias, precipitei-me, não parei para conceber melhor o universo imaginário, não preparei o terreno das personagens, quis experimentar, improvisar, cortar etapas. A ideia era criar uma espécie de ambiente de jazz, com música feita à medida da improvisação constante. Melhor imagem será dizer que era música de garagem: imaginem um grupo de rock que tenta, experimenta, imita, e sobretudo inventa sem se preocupar com o resultado final. Os grandes problemas surgem quando os músicos saem da garagem e enfrentam um meio habituado à qualidade. Para quê perder tempo a ler literatura improvisada, quando será bem melhor ler um romance a sério, devidamente trabalhado, escrito em papel?.
A minha ideia inicial era não me preocupar excessivamente com as naturais flutuações de qualidade dos textos, dada a natureza imprecisa do meio. A estrutura não podia ser idêntica à de um romance tradicional, pois haveria leitores a entrarem aqui a meio, outros a lerem uma vez por semana, muitos a caírem de pára-quedas nesta cena. Cada post teria de valer por si mesmo; cada história seria independente.
Onde penso ter falhado mais foi na concepção das personagens. Teresa não funciona, ponto. Não tem espessura, não parece autêntica; Jorge é impreciso; Cláudio escreve demasiado bem para a cultura que deverá possuir. As personagens femininas são pouco consistentes. Os textos têm excesso de sentimentalismo e, sobretudo, flutuações excessivas na respectiva qualidade, mas sempre num estilo monocórdico. Exactamente o inverso do que devia ser. Tentei também fazer histórias a várias vozes, mas nenhuma conseguiu riqueza de nuances ou profundidade de ideias.
Por vezes, este romance é simplesmente chato. Não há humor e penso que os leitores nunca conseguem envolver-se com as figuras. Estas, portanto, não mexem, não têm entranhas, não parecem sinceras. Estes textos não incomodam, não perturbam, não têm polémica.
Enfim, é o que penso deste blogue experimental. Mas, já que vos roubei tanto tempo, peço-vos um pouco mais de paciência: gostaria de conhecer a opinião dos leitores sobre isto, mas também sobre o problema inicial, será possível escrever um romance na forma de blogue? Deixem aqui o vosso comentário, que agradeço...
O ritmo dos Blues

É preciso chegar cedo ao Café Central. Ontem, pouco passava das nove da noite, quando ocupámos uma mesa e ficámos por lá, até à hora em que começava o concerto de jazz. O pequeno espaço enchera-se de entusiastas, repleto de fumo e com o vozear de pessoas que falavam alegremente sobre mil assuntos.
Ao nosso lado, sentara-se um rapaz negro e uma jovem branca e pensei como os dois deviam enfrentar tantos preconceitos. As dificuldades não se comparavam às nossas! Enquanto a Susana observava a azáfama do lugar, flutuei longamente numa bruma de ideias em farrapos, tentando perceber as razões dela para escolher a vida que escolhera. Recordei o nosso passeio pelo Prado, as pinturas negras de Goya, que explicara com evidente conhecimento. E riu-se, quando brinquei, prefiro a Maja Despida! Foi no parque do Retiro, ao fim da tarde, que lhe perguntei porque razão continuava com aquele homem. Estávamos sentados num banco de jardim, junto a uma fonte que a luz descendente da tarde banhava com tons dourados, Susana encolheu os ombros, disse que era tudo complicado, que não era apenas o que parecia, que a pergunta era íntima e a resposta fazia parte da sua liberdade. E fiquei estupefacto a olhar para ela, quase escandalizado, como podia alguém classificar aquilo íntimo e ainda falar de liberdade? Ela interrompeu de imediato: Que sabes tu sobre isso?
Era a nossa última noite em Madrid e penso ter compreendido, na curta discussão, a única que tivemos até agora, que sou uma espécie de capricho de Susana. Não tenho nenhuma outra importância na vida dela, além de acompanhante eventual em escapadelas de uma existência que terá as suas limitações.
“Art Déco, mas sem grande qualidade”, disse Susana, trazendo-me de volta ao café de jazz.
Ela não dissera mais do que isto, mas reagi como se tivesse ouvido: “não te rales, não leves as coisas tão a sério”. Tudo é transitório, em situações como esta. Os corpos que se movem no espaço, a alegria efémera e os ruídos dos copos nas mesas e dos talheres, das risadas, das conversas em murmúrio. Na correnteza de espelhos, estende-se um palco. Mas deste vasto teatro, resta pouco na memória, fracções apenas, pequenos rastos fugitivos.
Depois, veio a música, e continuei a flutuar numa nuvem de ideias contraditórias, uma ventania de adivinhas e pensei com nitidez que a Susana era como uma caixa de segredos, daquelas feitas em finas peças de madeira, com código interno. Para ser acariciada, mas nunca verdadeiramente vencida. Um dia, teria de descobrir o código ou aceitar de vez a minha condição subalterna.
A música levou-me para o interior de nova viagem. Tudo brilhava, tudo era excessivamente interessante. Não consigo descrever a emoção daquele quarteto de Jazz americano, Ben Sidran, ao piano, Bob Rockwell, ao saxofone. Foi uma noite magnífica, e fiquei todo aquele tempo a observar Susana, e a apreciar a forma como reagia às ocasionais palavras com que Sidran sublinhava a música, “não podem acreditar nas coisas que vi...” e eu estudava cada milímetro da cara dela e a textura dos cabelos, o brilho dos olhos, “podemos escolher os nossos próprios hipócritas”...
...Confesso que apanhei a meio a explicação do músico sobre um poema que Garcia Lorca terá dado a uma amiga, antes de partir para Granada, em Julho de 1936, desconhecendo ainda porventura que seria a sua derradeira viagem. Se me voy te quiero mas, dizia um verso...
...E, agora, no aeroporto, enquanto nos damos as mãos pela última vez, ela envia-me à frente, para a praça de táxis, espero aqui um bocado, telefono-te eu, diz Susana, tem sacos de compras nas mãos, a mala com rodinhas. E acena-me, como quem ordena, vai para casa, e eu penso: se me voy te quiero mas. E ouço a triste melodia do saxofone, quase um choro feliz, em balada de blues...
Imagem de Ben Sidran, actuando ao vivo
Buliçoso
Ao fim da tarde, as ruas de Madrid animam-se de novo. Milhares de pessoas percorrem as calçadas, transformando cada parte da cidade num muro de gente. Há habitantes no centro da cidade. Nestas ocasiões, explodem pormenores, os jovens alegres, uma janela partida, as portas dos cafés, uma esquina decrépita, a loja chinesa, o detalhe de arquitectura, um cartaz de protesto, o grupo animado que irrompe entre cotoveladas, o velho que bebe da garrafa, duas mulheres idosas de saco e braço dado, a rapariga vestida de negro e com botas, dois emigrantes índios que avançam em conversa morna, o motorista de autocarro que explica qualquer coisa a alguém, o cliente à porta da taberna de mãos nos bolsos...
Percorremos o labirinto urbano, presos a um fio invisível que nos arrasta no mundo. Por vezes, Susana aponta para alguma bagatela do espectáculo e diz, Daniel, olha para ali, e eu vejo o mesmo que ela vê e isso representa que temos algo mais em comum, uma pequena ninharia, mas algo mais, e sinto o braço dela colado ao meu e dispersam-se as sombras, regressa a alegria pura, a agitação, uma espécie de eternidade feita de pequenas coisas, futilidade, bugigangas que brilham.
Susana perdeu o artifício que a dominava. Sim, mudou nestes dias. Os traços da sua expressão são mais suaves, é tudo o que posso dizer, pois não consigo descrever a beleza do rosto de uma mulher, a simetria, a proporção exacta entre olhos, sobrancelhas, lábios e cabelos.
Vejo que na nossa direcção avança um casal. Ele é um homem pequeno, talvez 60 anos, fato branco, dá o braço a uma jovem mais alta, vistosa e visivelmente meio-índia. Em Madrid, são frequentes casais assim, de espanhóis idosos acompanhados por mulheres sensuais. Dizem que essa mudança nos costumes ocorre em sociedades com forte imigração. Indiscretos, olhamos para trás quando o casal passa por nós. A cena parece patusca e Susana ri-se. Eu também ia dizer uma graçola, mas de súbito tomo consciência da estranheza do riso. Ela deve parecer-se com a índia, quando caminha ao lado do seu...
Uma mancha começa a nublar a minha disposição. Porque se riu ela de uma cena onde se poderia ter revisto? Por um instante gélido, quase me parece que Susana age sempre com a mesma insensibilidade e alheamento em relação a si própria, como se pudesse separar-se do corpo, desligar-se dos sentidos e assim assumir o ser de outra pessoa. E, então, quando me envolvo em pensamentos sombrios, sinto de novo a pressão do seu braço preso ao meu, e a alegria buliçosa dela, no meio da confusão de gente que nos rodeia. Quem é esta mulher, penso, e a que ponto estou preso no seu feitiço?
Olho mais uma vez para trás, e no caos dos corpos, ainda vejo de costas aquelas duas pessoas, o homem baixo, com fato branco, e a rapariga meio-índia, que se equilibra perigosamente nos saltos altos. E ninguém está interessado neles, ninguém desvia a vista, ninguém os procura, naquela anónima, imensa, multidão.
À hora da sesta
Decidimos seguir o ritmo da vida dos madrilenos. Almoçámos e regressámos ao hotel. Depois de fazermos amor, ficámos abraçados no silêncio do quarto. Primeiro, calados, como se a nossa vida se limitasse àquele delírio carnal. Depois conversámos, em vez de dormirmos a sesta. O passado de Susana intrigava-me e questionei-a sobre o que fizera na juventude, como vivera até eu a conhecer. Ela foi evasiva e deu a entender (com firmeza, mas sem quebrar o momento) que não desejava falar demasiado. “Tens de me aceitar como se não houvesse um passado na minha vida”, disse ela.
No fundo (essa é a realidade) tenho de a aceitar como se ela não tivesse nem passado nem presente. Susana é um mistério esquivo, um mosaico que vou construindo, juntando peças desconexas. Contou-me que trabalhou como modelo, antes de conhecer o homem com quem vive agora e cujo nome não vou aqui escrever. Tentei perceber porque razão escolheu ser a amante de alguém muito mais velho, mas Susana foi interrompendo suavemente cada uma das minhas tentativas de a interrogar. No fim, não consigo ter uma imagem clara: terá sido atraída pelo poder, pela facilidade da sua nova vida? É uma forma de desilusão ou desistência de algo pior? Porque trocou a hipótese de ser uma jovem de classe média, estudante de história de arte, por um destino sem futuro? Não consegui arrancar-lhe um único lamento, uma frase que revelasse juízo moral sobre a sua prisão. A ponto de me parecer que era eu quem via aquilo como uma forma de cárcere. Era eu quem moralizava, quem a condenava intimamente. É a minha falta de imaginação que me impõe a imagem de uma Susana a escolher a via única: recém-casada com um colega de escola (casal de ingénuos) a fazer o contrato de promessa de compra e venda de um apartamento T2 no Cacém com vista para a fileira de prédios cinzentos em frente, apesar do peso da hipoteca, ela a pensar em fazer um filho, enquanto ele faz contas a quanto irá custar fechar a varanda com uma marquise e sonha com o seu novo carro de 1100 centímetros cúbicos.
Não era essa Susana imaginária e banal que eu via ali, nua e concreta, sobre os lençóis de um quarto de hotel em Madrid. Desejei-a de novo, abracei-a. E pensei: perco o fôlego nesta maré obsessiva. Queria pedir-lhe perdão pelas dúvidas que tinha, mas apenas me deixei levar em carícias, sem perceber mais nada. Não tínhamos tempo suficiente para vivermos toda a nossa vida obscura nestes curtos dias luminosos e disfarçados. E assim, num abraço, flutuámos à deriva, glória demente, em busca da essência humana, esse segredo, o elemento separado de tudo o resto que nos unia.
Deambulação

Madrid espreguiça-se ao sol, magnífica. Talvez seja a presença da Susana, a meu lado, que me faça ver as ruas e gentes numa óptica mais favorável. Mas raramente vivi tal exaltação ou senti a importância da liberdade dos gestos.
E, ao mesmo tempo, sou invadido por ideias sentimentais. Observo os prédios dos bairros velhos e, quando encontro cartazes de imobiliárias, perco-me em detalhes. Consigo imaginar-me a vender apartamentos no bairro das Letras. Navego longamente nestes jogos, a apreciar o estado das fachadas.
De manhã, estivemos na Plaza Mayor e ali ficámos horas, extasiados com a harmonia e (estranhamente) com a caótica disposição das multidões que atravessam aquele espaço excessivo. Comemos tapas, íamos entrando nas diferentes tascas, numa deambulação alegre.
“Podia viver aqui”, disse eu, quando subíamos Calle Moratin, no final da tarde, depois de termos passeado pelo Jardim Botânico.
A princípio, a Susana não falou. Mas, depois de termos subido mais um terço da rua, encontrou um prédio e apontou para ele:
“A nossa casa, ali”.
Sorriu, mas nunca a vira sorrir daquela forma, num misto de melancolia suave e pensativo tumulto, mas com evidente prazer sonhador. Os olhos castanhos dela brilhavam, como se tivesse uma fina película de água a mais.
“Não é uma casa grande, mas podemos viver bem”, continuou Susana, com um toque cruel na cara de anjo. “Todas as manhãs, vamos tomar o pequeno almoço naquele pequeno café”.
Entrámos. O local era patusco: chamava-se “A Taberna dos Conspiradores”.
“Cheio de história, repara nos detalhes, nas vigas de madeira e nos azulejos velhos”, disse ela. Susana apontava para uma fileira mais baça que ornamentava uma parede. Devo tê-la olhado com tal surpresa, que se viu obrigada a esclarecer aqueles conhecimentos: “Estudei dois anos de História de Arte, tenho obrigação de saber estas coisas”. Sorria ainda, coquete, com um toque de orgulho, talvez por me ter surpreendido, ou sem se aperceber do absurdo.
Ainda por cima, aquele nome, “Taberna dos Conspiradores”. Era um sítio pequeno, atrofiado, onde nos escondíamos, como conjurados, inclinados em bancos baixos, que nos forçavam a falar próximos um do outro, em sussurros. De súbito, tomei consciência de que sabia muito pouco sobre a mulher que amava. Ela estava à minha frente, serena. Mas pareceu-me olhar para o interior de um abismo. Era como aquela cidade: podia percorrer as suas ruas como se acariciasse a pele de uma mulher, mas nunca compreenderia o seu passado. Mais que nunca, Susana não passava de um enigma, do qual conhecia apenas o corpo, ainda e sempre afastado do conteúdo impreciso da sua alma.
Clandestinos
O nosso encontro foi às sete e meia da manhã, no aeroporto, mas quando nos vimos um ao outro, apenas trocámos um breve sinal, quase imperceptível. A Susana arrastava pelo chão uma pequena mala preta, com rodas, vestia um casaco castanho, longo, que dava com a cor dos seus cabelos. Senti um súbito desejo, mas olhei em volta, enervado, a ver se alguém percebera a nossa relação. Concluímos o check-in separados, com lugares separados. Para todos os efeitos, ela ia fazer compras a Madrid, sozinha.
Por vezes, Susana olhava na minha direcção, mas fazia-o discretamente, como se observasse um passageiro qualquer, um desconhecido. Nem no avião nos atrevemos a falar um com o outro. Só o fizemos em Madrid, no anonimato do gigantesco terminal. E mesmo ali, não me atrevia a beijá-la. Tomámos a linha oito do metropolitano e conversámos, a tapar as lacunas do tempo que tínhamos perdido. Mas não lhe perguntei sobre "ele". Aliás, nunca pronuncio o nome "dele", não o quero pronunciar.
Só nos beijámos quando chegámos à linha um e porque a estação parecia vazia. Foi um beijo longo e sôfrego. O nosso hotel ficava no centro, no Calle Atocha. Pouco elegante, mas pensámos que ali não haveria outros portugueses que nos pudessem reconhecer. Em Novembro, seria quase impossível que o nosso amor clandestino fosse descoberto. Por isso, entrámos no hotel como um casal. E, quando ficámos sozinhos no quarto, deixámos de pensar nas consequências. Agora, tínhamos todo o tempo só para nós.
E eu queria perguntar-lhe, fica comigo, deixa-o, isto não é vida, mas não me atrevi. A Susana ria-se, estávamos numa praça próxima do hotel, ao fim da tarde, junto à estátua de Tirso de Molina, a observar a azáfama do bairro popular, a alegria confusa da gente, o emaranhado étnico. Sentíamos o cheiro da liberdade, a brisa e o ligeiro frio; um sol esplendoroso iluminava o topo dos edifícios velhos; e Susana apenas conseguia rir, com aquele seu riso descontraído e leve, fino como a água; ria-se da minha comoção, do que me estrangulava a garganta, e ela a pensar que eu brincava, sem saber o que queria verdadeiramente pronunciar, que o abandonasse, como se o cuspisse; "ele", o que nos tira tudo, o que sufoca este amor, o que nos esmaga com a sua presença distante. E ela ria-se da banalidade que eu dissera de facto, que nos tínhamos enganado no avião e aterrado na América do Sul; antes fosse, pensei, para estarmos suficientemente longe desta opressão, da vida que levamos.
Madrid cantava, com os seus imensos ruídos de uma alegria constante. E o sol pintava com cores festivas e douradas as fachadas contentes dos prédios.
Segurei a mão de Susana e ficámos ali um longo pedaço, como dois adolescentes, em silêncio, a ver passar o mundo.
Uma discussão
Ontem, zanguei-me seriamente com o Jorge. Fiquei tão ofendida, que não lhe falei durante horas, até ele ficar aflito e tentar pedir desculpa. Quando se aproximou, a fazer beiços, quase a implorar, recusei ceder. Aí, ficou ele ofendido. Se fosse noutro dia, talvez tivesse capitulado, mas nunca me tinha sentido tão emocionada, intransigente.
E, bem vistas as coisas, foi uma daquelas discussões fúteis que fazem parte da vida.
(Quando fui viver com o Jorge, lembro-me de ter conversado com amigas e uma delas, mais velha, ou tinha casado mais cedo, já não me lembro bem, dizia que uma parte muito importante da minha vida de casada seria gerir as discussões, não deixar que elas ultrapassem os limites, aquele ponto de não retorno a partir do qual só existe um caminho, e é o caminho da ruptura; eu não acreditei nela, disse que comigo seria diferente, que não tencionava ter discussões com o meu marido, enfim, ele não era exactamente o meu marido, nunca casámos com papel e tudo...)
Agora vejo a minha ingenuidade à época. E o que me espanta é que não passaram assim tantos anos. Três anos. E dizem que este é o primeiro obstáculo numa relação, ultrapassar os três primeiros anos, parece que a espécie está fabricada assim, para aguentar primeiro três anos (o tempo de fazer e amamentar o primeiro filho), depois sete anos (não sei porquê), depois quinze anos (que era uma eternidade para os nossos antepassados). Os prazos têm explicação certificada pela natureza humana e tudo se explica pela cablagem cerebral, acho que é a expressão usada pelos autores anglo-saxónicos.
Não percebo como ainda consigo ser cínica em relação a isto, mas não há cablagem cerebral que me faça entender o Jorge.
“És uma provinciana, uma saloia”, sentenciou ele. Estávamos a falar de um programa de televisão qualquer, sem motivo aparente. E ele saiu-se com aquela. Primeiro provinciana, o que sendo verdadeiro me incomodou. A palavra saloia é que me ofendeu. O Jorge disse aquilo sem provocação, a propósito de uma opinião minha que não merecia uma sentença daquelas. Ele gosta de comentar a minha suposta ignorância, patetice ou simplicidade. Sou rústica. O Jorge acredita nisso, mas ainda não o tinha afirmado. “És uma saloia!”
Sou a parte ofendida e, apesar disso, tenho a obrigação de perdoar. É assim que ele funciona. Ele pode magoar e ser cruel e, de mim, espera-se que seja uma boa mulherzinha, paciente e tolerante, com a sua raiva devidamente contida e controlada.
Chuva
O Tiago veio buscar os miúdos para o fim-de-semana mas o David insistiu em ficar comigo. No fim, conseguimos não discutir, mas o meu ex-marido acha que eu estou a influenciar o rapaz e a impedi-lo de passar dois dias com ele. Fico numa situação difícil, mas tenho de proteger o David e respeitar a sua vontade, embora também seja importante que ele passe aqueles dois dias com o pai. Mas, no fundo, a escolha certa é a que o rapaz quiser fazer.
A nossa vida está repleta de pequenas chantagens e temo que também eu não escape a essa manipulação das vontades desprotegidas. Bastam os meus silêncios, que o David interpreta como uma poderosa tristeza que ele deve contrariar com a sua vigilância. O meu filho faz-me ver, nesses sentimentos simples e ingénuos, que os seres humanos são capazes dos mais nobres gestos, pelo menos antes de perderem a inocência.
Poderia sentir uma autêntica alegria, nestes momentos. Mas sou tomada por uma culpa que não consigo compreender inteiramente. Tudo se mistura: a maneira como me afastei do meu pai, que nunca consegui amar; o colapso do meu casamento com o Tiago, que ele nunca explicou devidamente, mas do qual me culpo também, mesmo sem saber a razão...
Tudo deve ter a sua razão, suponho, apesar de nada no amor ser razoável. E de nada no desamor ser racional.
O Tiago saiu de casa num dia de chuva, sem me dizer porquê. Deixou para trás dois filhos. Passaram dez anos e ainda não lhe consigo perdoar essa desistência. Mas terá sido uma desistência? E o que mais me surpreendeu, nessa noite terrível, era o facto de ele ter escolhido uma noite de chuva para sair de casa. Imaginei-o a molhar-se até aos ossos e senti por ele uma aflição. E pensei: voltará, é certo que voltará, porque chove assim...
Regressa agora, de quinze em quinze dias, para ver os filhos que não o querem ver.