17.10.06

Reflexo


Colocamos mensagens nas paredes de uma casa assombrada. Os leitores dessas palavras são viajantes efémeros. Podem até deixar novas mensagens nas paredes, mas tudo é virtual. O que parece ter existência, afinal não existe. Tu és a excepção, pelo menos tens a certeza disso. Este local indistinto, chamado blogosfera, tem múltiplos habitantes, mas só tu, que me lês, estás aí.
Eis a diferença entre o que aparece escrito num livro e estas palavras à solta, que não têm solo firme que possam pisar.
Uma pessoa que observa o seu reflexo é ela mesma ou quem ela se imagina ou alguém que os outros estão a ver enquanto se olha?
Num conto de Vladimir Nabokov, há um barbeiro em Berlim que é antigo capitão dos exércitos brancos da guerra civil russa. Por acidente, o seu torturador comunista entra na barbearia. E, perverso, o escritor deleita-se a descrever a lâmina afiada a percorrer a garganta do comissário, deslizando na pele, empunhada pela personagem do capitão, que se interroga se deve ou não cravá-la no comunista indefeso, desatento ao que está completamente visível perante os seus olhos, se ao menos olhasse o espelho. Ou seja, e esse é o ponto crucial, o invisível barbeiro é sempre mais do que essa precária sombra, mal perceptível. O nosso erro é nunca olharmos com cuidado.
A literatura vale pela força de verdade que as palavras carregam. Cada vez que hesitamos, essa necessária nudez fica mais longe. Mas, por outro lado, à lâmina só é permitido deslizar, muito ao de leve, sobre a ténue casca da pele. E ao intruso indefeso, nunca convém olhar de frente o espelho.