A Klára leu-me o que está nos dois primeiros cadernos de István Farkas. Têm data de 1957 e 1958 e contam a sua história durante a revolução de 56. Farkas era estudante na universidade técnica e viu-se envolvido nos primeiros tumultos, no dia 23 de Outubro. Assistiu ao tiroteio junto da rádio, porque estava à procura da namorada, para a levar para casa. A rapariga chamava-se Eva e era estudante de música. Encontrava-se na rádio a ensaiar com uma orquestra juvenil (ela tocava violoncelo) no exacto instante em que Farkas se juntou aos outros estudantes, na praça da estátua do general Bem.
István foi arrastado pela multidão na direcção da rádio e, ao perceber que ia haver violência, ficou muito agitado e começou a procurar Eva. Desesperado, ficou nas primeiras filas do povo e viu quando os mais exaltados começaram a apedrejar as janelas. E, por ironia, entrou na revolução a tentar travá-la, pois pensava que Eva ainda estava no interior do edifício e tentou impedir o apedrejamento. Na realidade, ela saíra antes, pois alguém avisara os músicos para abandonarem o local. István escapou ao tiroteio, mas foi pura sorte. Estando na primeira fila, poderia ter acabado como muitos dos jovens que lideravam a marcha. Ficaram vários corpos inertes no chão e a multidão enfureceu-se, investindo contra a odiada rádio.
Infelizmente, a narrativa está interrompida neste ponto. O segundo caderno começa com os combates de Novembro. Ficamos sem saber o que aconteceu a Eva nos dias seguintes, embora se perceba que os dois amantes se reencontraram e viveram, juntos e num desespero, aquelas horas de angústia.
Farkas recorda como, nas barricadas, à espera dos soviéticos, pensou que tinha poucos minutos de vida, no máximo algumas horas disponíveis. E concentrou-se em duas ideias, o seu amor por Eva e a pátria moribunda. E sendo a pátria impossível, qual o sentido de um amor que o esmagava?
O combate com os soviéticos foi rápido. A barricada foi aniquilada pelos carros de combate. Ferido, Farkas fugiu por ruas laterais, com outros companheiros, perseguidos pela infantaria russa. Alguns não conseguiram correr e foram abatidos. István Farkas largou a sua arma, saltou um muro e correu pelas ruínas de um prédio (bombardeado durante a guerra) e que ainda não fora reconstruído. Os soldados soviéticos abandonaram a perseguição, pois arriscavam-se a cair numa emboscada. Ao sentir que tinha escapado, István correu para reencontrar Eva.
Só nos resta a fuga, explicou ele à sua amante. Passaram essa noite juntos, enquanto se ouvia o som dos combates, que prosseguiram esporadicamente.
A noite torna-nos pequenos, até minúsculos, quando as trevas do medo nos engolem.
A minha coragem dissipara-se e encontrava-me perante o eu mais obscuro e íntimo, que desconhecera até aquele dia. Sentia a respiração dela, o corpo dela abandonado e sereno, a meu lado, mas eu já perdera o fôlego, sabia isso, estava despido de sopro, com os músculos doridos e envergonhados. E formou-se essa angustiante visão de já não pertencer ali, de ser alheio a mim, pois na pátria que se afundava era eu próprio que me consumia como uma chama inútil, agora desfeito e apagado, agora sem rumo, agora à deriva...
O gado encurralado no matadouro terá talvez a ilusão da sua eternidade. Um tio que esteve deportado nos campos de concentração contava-me que as pessoas avançavam para a morte como gado encurralado e, sabendo perfeitamente a sua sorte, esperavam até ao último segundo que houvesse um milagre, que aquilo não fosse bem assim, que havia talvez um ponto de fuga, um ângulo que os nazis não guardavam, ou um último gesto de humanidade...
Sabemos que a esperança era em vão! Budapeste transformara-se numa gigantesca penitenciária, mas houve uma pausa e eles indicavam o caminho da fuga. Há comboios para ocidente e milhares apanhavam o comboio. A fuga tinha um toque de surreal, mas a porta abrira-se de facto, só não sabíamos por quanto tempo. Se eu não fugisse, esperava-me o ajuste de contas...
István Farkas tentou convencer Eva a escapar com ele, mas não conseguiu. As razões da recusa não são claras. No seu relato, Farkas interroga-se: Eva não o amava suficiente ou foi para o salvar?
A última imagem que tenho de Budapeste é a de uma cidade a preto e branco, envolta pelo frio da morte. A bruma cobria o Danúbio, cuja água vinha alta. A humidade gelada cobria os telhados e uma brancura de cinza propagava-se até ao céu. E ela disse: "Tenho medo de te atrasar. Se for contigo, podes não conseguir fugir. Por isso, fico aqui". O meu coração gelou nesse mesmo instante.
O resto, foi uma fuga desvairada por um longo túnel, longo, longo, longo....
A minha coragem dissipara-se e encontrava-me perante o eu mais obscuro e íntimo, que desconhecera até aquele dia. Sentia a respiração dela, o corpo dela abandonado e sereno, a meu lado, mas eu já perdera o fôlego, sabia isso, estava despido de sopro, com os músculos doridos e envergonhados. E formou-se essa angustiante visão de já não pertencer ali, de ser alheio a mim, pois na pátria que se afundava era eu próprio que me consumia como uma chama inútil, agora desfeito e apagado, agora sem rumo, agora à deriva...
O gado encurralado no matadouro terá talvez a ilusão da sua eternidade. Um tio que esteve deportado nos campos de concentração contava-me que as pessoas avançavam para a morte como gado encurralado e, sabendo perfeitamente a sua sorte, esperavam até ao último segundo que houvesse um milagre, que aquilo não fosse bem assim, que havia talvez um ponto de fuga, um ângulo que os nazis não guardavam, ou um último gesto de humanidade...
Sabemos que a esperança era em vão! Budapeste transformara-se numa gigantesca penitenciária, mas houve uma pausa e eles indicavam o caminho da fuga. Há comboios para ocidente e milhares apanhavam o comboio. A fuga tinha um toque de surreal, mas a porta abrira-se de facto, só não sabíamos por quanto tempo. Se eu não fugisse, esperava-me o ajuste de contas...
István Farkas tentou convencer Eva a escapar com ele, mas não conseguiu. As razões da recusa não são claras. No seu relato, Farkas interroga-se: Eva não o amava suficiente ou foi para o salvar?
A última imagem que tenho de Budapeste é a de uma cidade a preto e branco, envolta pelo frio da morte. A bruma cobria o Danúbio, cuja água vinha alta. A humidade gelada cobria os telhados e uma brancura de cinza propagava-se até ao céu. E ela disse: "Tenho medo de te atrasar. Se for contigo, podes não conseguir fugir. Por isso, fico aqui". O meu coração gelou nesse mesmo instante.
O resto, foi uma fuga desvairada por um longo túnel, longo, longo, longo....
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